Natal com rosa

Foi como ficcionista que Guimarães Rosa cristalizou o inconfundível ludismo de seus lances no jogo com a linguagem. Mas foi com um livro de poesia, “Magma”, que ele ganhou, em 1936, o prêmio da Academia Brasileira de Letras. Este livro, no entanto, só foi publicado em 1997, trinta anos após a morte do autor, que o considerava uma obra menor. Em vida, Guimarães Rosa publicou esparsamente raros textos poéticos. Em 1967, um mês após seu falecimento, a revista Realidade, publicou alguns poemas de natal em que o boi e o burro contracenam com o divino e o humano na cena do presépio. Inspirados em obras da pintura clássica, estes poemas formaram um mosaico natalino, de vinte e seis quadros, no livro póstumo “Ave, Palavra”, publicado em 1970 pela editora José Olympio.
Metáfora de uma naturalização da cultura e de uma humanização da natureza, eis como Guimarães Rosa, a partir do quadro “Natividade”, de Fra Filippo Lippi, cria sua utópica versão do presépio:
Obscientes sorrisos
– orelhas, chifres, focinhos,
claros –
fortes como estrelas.
Inermes, grandes.
Sós com a família (a ela se incorporam),
são os que a hospedam.
Alguma coisa cedem
à imensa história.
E a partir do quadro “Adoração dos Três Reis”, de Domenico Ghirlandaio, o presépio rosiano instaura uma convivência não hierarquizada das criaturas, na ordem da boa-vontade:
Serão os pajens da Virgem,
ladeiam-na
como círios de paz,
colunas
sem esforço.
Taciturnos
eremitas do obscuro,
se absorvem.
Sua franqueza comum equilibra frêmitos e gestos
circunstantes.
Os animais de boa-vontade.
Que os animais de boa-vontade da poesia rosiana sejam nossos coadjuvantes na busca de transformar nosso coração num presépio onde o Deus que se fez Homem se sinta em casa – na casa do Homem que só se diviniza ao se humanizar: ao se fazer o mesmo com o outro, em comunhão com a Natureza e com o Universo.
Afonso Guerra-Baião