Amar como Platão amou

Tudo tem seu lado positivo. A quarentena na pandemia, por exemplo, proporcionou ao casal esse momento de diálogo.
Ele: – O que você está lendo aí, tão concentrada?
Ela: – “A defesa de Sócrates”.
Ele: – Já vi vídeo dele. Craque. Fazia até gol de calcanhar. Mas não sabia que jogou de goleiro.
Ela: – Este aqui é o Sócrates filósofo.
Ele: – Filósofo? Ele que escreveu esse livro?
Ela: – Ele não escrevia: desenvolvia seus raciocínios conversando, dialogando, levando o interlocutor a pensar junto com ele.
Ele: – Então como você está lendo um livro dele?
Ela: – Foi escrito por um discípulo, que escreveu também este outro, “A República”.
Ele: – República? Detesto política!
Ela: – Esse diálogo trata da ética, da justiça, da responsabilidade dos governantes e dos cidadãos.
Ele: – Conversa fiada, isso não existe.
Ela: – Talvez você gostasse de uma parte, a do Mito da Caverna, que é muito bonito e faz pensar, faz refletir sobre essência e aparência, verdade e preconceito.
Ele: – Eu sou um cara de ação. Não perco tempo com masturbações intelectuais. Como dizia meu avô, de pensar morreu um burro.
Ela: – Sócrates disse que a vida sem reflexão não vale a pena.
Ele: – Você está querendo dizer que minha vida não tem sentido?
Ela: – Eu não disse isso. Mas o que você quis dizer com aquilo de masturbação intelectual e de burro que morre tentando pensar?
Ele: – Foi mal. Desculpa, vai? Quem foi mesmo o tal discípulo que escreveu as falas de Sócrates?
Ela: – Platão. No diálogo “O Banquete”, ele trata de um tema que pode te interessar.
Ele: Banquete, oba!
Ela: Não, o tema é o amor, você já deve ter ouvido falar em amor platônico.
Ele: – Amor platônico? Amor sem sexo? Tô fora… De boa…
Ela: – Talvez seja melhor eu te emprestar um livro que traduz o verdadeiro conceito do amor platônico: sexo com amor, matéria com transcendência, indivíduo com universo.
Ele: – Você tá de sacanagem comigo…
Ela: – Sério. É “O amor natural”, livro de poesia erótica de Drummond.
Ele: – Erótica… Drummond… Só se for foto da Larissa Drumond no Insta…
Ela: Acho que você devia mesmo ler o livro do poeta Carlos Drummond.
Ele: – Tá bom… Leia um trecho pra ver se me dá tesão.
Ela: – “O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?”
Sentindo o súbito silêncio, ela viu que ele olhava fixo, os olhos arregalados, para algum ponto perdido no espaço.
Ela: E então?
Ele: Tô aqui pensando…
Ela: Pensando em ler Drummond?
Ele: Pensando no pratão…
Ela: Platão, você quer dizer.
Ele: Não. Pensando no pratão que vou bater daqui a pouco… Não sabia que conversar dava fome!
(Afonso Guerra-Baião)