O Bicho de Bandeira

Quem não leu “O BICHO”, aquele poema tão pequeno e tão simples de Manuel Bandeira? Eu o reli depois de me deparar com uma cena que volta a ser frequente em nossas ruas, agravada pelo contexto da pandemia. Pois é, dá pra desconfiar que esse poema é maior e mais complexo do que parece à primeira vista, por isso convido você a revisitá-lo, em minha companhia. É quando a gente se demora com um poema que podemos entrar no seu jogo de esconder e de mostrar. Vamos a ele:
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira
Alguém dirá que esse poema não oculta nada, que é um texto explícito, totalmente denotativo. Será mesmo? Vamos observar a expressão “o bicho”, no título: o artigo definido confere à palavra “bicho” um sentido figurado, conotativo, de singularidade absoluta, numa dimensão mítica de totalidade. Já o primeiro verso, graças ao artigo indefinido, conduz nosso olhar para o campo da denotação: “um bicho” indica um animal qualquer. O significado de animal comum, no sentido próprio e genérico da palavra, é confirmado por outros vocábulos da estrofe: “imundície”, que indica a impureza do espaço destinado aos animais; “pátio”, que indica área exterior, própria para patear; “catando”, que indica uma ação mais grotesca que pegar ou recolher; “detritos”, que indica as sobras com que os animais se saciam. O texto começa a se desenvolver num deslizamento de sentido que passa do subjetivo e simbólico para o objetivo e literal. E assim continua.
Na segunda estrofe o sentido denotativo da leitura segue sendo confirmado pela atitude do “bicho” que come com voracidade, sem examinar nem cheirar o que encontra. O ato de catar é primitivo; o ato de comer sem nenhum processo de seleção nem de preparo, afasta o personagem de qualquer traço cultural, inserindo-o na naturalidade animal.
Na terceira estrofe, através de uma progressão decrescente, que vai do animal maior e mais próximo do homem (cão) até o menor e mais afastado do homem (rato), o sentido literal com que “bicho” vinha sendo lido nas duas primeiras estrofes, começa aqui a ser desconstruído, nessa progressão que prepara a revelação da verdade.
Quando chegamos ao último e isolado verso que constitui a quarta estrofe, a gente se depara com outra progressão. Desta vez, uma progressão irregular que vai do menor e pertencente à natureza (bicho) ao maior, superior e pertencente ao mítico (Deus), até voltar ao termo mediano e pertencente à cultura (homem). Então ficamos sabendo que “bicho”, aqui, não é um animal no sentido mais comum da palavra, nem a figuração de um ser mitológico, mas é metáfora do homem que vive em situação desumana. Porém, esse verso solitário e final ainda nos surpreenderá com uma súbita mudança, passando da descrição para a interlocução, através do vocativo (“meu Deus”): a invocação à divindade, ao mítico, verbaliza a angustiada indignação frente à irracionalidade da condição humana ou de certas condições desumanas em que vive o bicho homem.
(Afonso Guerra-Baião)